Chuva torrencial
Ainda estou naquele carro, naquela noite de chuva torrencial, em que empurravas o carocha sozinho, com os pés na estrada encharcada, cheia de lama e pedras, que escorregavam por baixo dos teus pés, por causa da chuva. Ainda estou lá, no banco de trás do carro, a chorar, a chamar por ti.
- Pai! Pai!
Sentia-me petrificada de medo. Naquela noite já era muito tarde, vínhamos dos teus treinos, que acabavam lá para depois das 22:30. Saímos de Algés, onde treinavas futebol salão, depois do trabalho. Lembras-te? Ias buscar-me à escola, eu ia contigo para o trabalho, depois íamos para o treino, eu ficava no banco, enquanto tu treinavas. Adormecia a ver-te jogar. Lembras-te pai? Será que te lembras de me veres adormecer? De vez em quando espreitavas, era nesse momento que eu fechava os olhos e adormecia, mesmo com aquelas luzes fortes e o som dos ténis a deslizar no piso em madeira envernizada. Eu adormecia e ouvia os sons das vozes e dos sapatos, eu adormecia assim, no banco.
Naquela noite, chovia em tempestade e o carro avariou, enquanto passávamos por aquele bairro manhoso, cheio de pessoas perdidas, as mesmas, que nos roubavam a roupa do estendal, daquela casa, que a minha mãe insistiu que nos mudássemos, porque ela não queria viver na casa da avó Lourdes em Belém. A casa para onde ela nos levou, também ficava num bairro manhoso de Lisboa, mas não tão mau, como aquele em que o carro avariou naquela noite.
- Pai, vamos a pé para casa, deixa o carro!
Mas tu disseste que não podia ser, porque na manhã seguinte o carro já não estaria ali, além disso, - Vais-te molhar toda, ainda apanhas uma pneumonia.
Vestiste o impermeável, mas o carapuço estava sempre a cair-te da cabeça, chovia muito. Abriste a porta do condutor e começaste a empurrar o carro, enquanto seguravas no volante, os teus pés escorregavam pelas pedras e lama, que escorria pela estrada com a chuva. Estava tão escuro, chovia tanto, ainda estávamos longe. Estavas decidido a levar o carro assim, até casa, comigo lá dentro, no banco de trás, a chorar e a gritar por ti, para que me deixasses ajudar a empurrar. Eu conseguia, eu sei que sim! Estava com medo, as pessoas do bairro ainda mais manhoso que o da nossa casa, estavam a começar a espreitar à janela e alguns ficavam na porta a ver, sem fazerem nada, sem dizerem nada, mas podia ver-se pela expressão, que nos queriam mal. Sabiam bem quem éramos e também conheciam o carro, porque já o tinham roubado antes, as nossas roupas também. Passou muito tempo, mas não desististe, até que paraste um pouco e eu disse:
- Pai vem para dentro, estás todo molhado, está a chover muito.
Disseste que estavas só a descansar um pouco, - Tenta deitar a cabeça no banco, o pai vai levar-te para casa.
Depois não falaste mais, o carro já não parecia mover-se. Vi um homem, que com muita calma, fumava um cigarro à porta de uma das casas, por cima da porta tinha uma lâmpada que iluminava um pouco, mas era uma lâmpada fosca, de tom amarelado. Ele acendeu um fósforo, tirou um de uma daquelas carteirinhas de fósforos pequenas, depois acendeu outro cigarro. Estava a olhar para ti e depois olhou para mim, sentada no banco de trás. Já não chorava, mas tinha a cara toda molhada, com lágrimas que ainda escorriam, sentia os olhos molhados, mas não queria deixar as lágrimas cair, não com aquele homem a olhar, olhava para ele também, parei de chorar.
- Vai uma ajuda amigo?
- Não obrigada, está tudo bem. - O meu pai respondeu.
O senhor olhou mais uma vez para mim, avançou para a parte de trás do carocha e começou a empurrar. O carro deu um solavanco e a avançou um pouco mais.
- Se a miúda sair do carro é mais fácil. - disse o tal homem do cigarro.
O meu pai respondeu:
- Não. A miúda fica no carro. Obrigada pela ajuda.
Depois ouvi-o chamar outra pessoa, que também veio empurrar, juntou-se uma senhora também e o carro avançou. Chegámos mais perto de casa e o meu pai foi num instante levar-me a casa, enquanto os amigos continuaram a empurrar o carro. Corremos debaixo de chuva, lembro-me das pedras que pisava e ia escorregando pelo caminho, o meu pai pegou-me ao colo, carregou-me assim, a chorar no seu ombro, enquanto ele tentava tapar-me a cabeça com o impermeável, que ele tinha despido para me tapar. Chegámos a casa, a minha mãe abriu a porta. Voltaste para ir buscar o carro e eu esperei à janela até te ver chegar.
Chegaste finalmente, eu ainda estava com a roupa molhada vestida e com os sapatos molhados cheios de lama, calçados. Vi-te falar com as pessoas que te ajudaram, agradecias, só queria que viesses para dentro. Vi-te da janela do primeiro andar, da casa onde murávamos, naquele bairro manhoso, mas não tão manhoso como o outro, dos amigos que te ajudaram a empurrar o carro até casa, debaixo de chuva torrencial.
Ainda te vejo, pela janela do carro, eu estou no banco de trás a chorar, o céu está escuro e chove, chove torrencialmente, o chão com pedras e lama, que escorre por debaixo da sola dos ténis brancos, que tens calçados, nos teus pés de futebolista, e tu, espreitas pela porta aberta, a porta do condutor, olhas para mim, sorris e dizes:
- O pai vai levar-te para casa, está bem? Não chores, estamos quase lá.
Estás seco. Com as mãos molhadas, aperto o impermeável que me vestiste naquela noite, ainda o tenho comigo, porque chove no banco de trás.
You’re so far away from me, so far I just can´t see…
Maria.