Lagoa Mãe

Quando parei de ser eu? Também sou eu agora, mas um eu diferente. Distante? O que sou, eu? O que é isso do eu? Temos tanto essa mania, o eu, eu isto, eu aquilo, eu existo. Existo? Sou eu? Sou tudo eu, tu, ele, nós, vós, eles, tudo sou eu. E o tudo, o que é? A praia, o mar, eu, o asfalto, a calçada, a senhora do quiosque, que ajeita as cadeiras, as bolas penduradas que vende, as toalhas que estende. Tu, passas por mim, tu a seguir, depois tu que trazes o animal pela trela, o animal da floresta que trazes até ao mar, ele não bebe mar, bebe rio, come carne, cheira a mato. Chapéus, toalhas, crianças, gritos, alguém ri, todos caminham, uns não. Todos juntos, ali. Uns em cima dos outros, juntos, como família que partilha o espaço, delineado, eu aqui, tu aí, ele está ali, este espaço é meu, o das minhas toalhas, chapéu… vês? Este espaço é meu, não teu, esse é teu, por isso ficas aí e eu aqui. Eu vejo-te, tu vês-me. Aqui não existem janelas, nem cortinas, tão pouco existem portas, mas eu sei o meu espaço e tu sabes o teu.

A linha do horizonte, o que delineia? Por muito que caminhe, navegue, possa até voar em direção a ela, é inatingível, sempre mutável e distante.

Carrego um peso nos ombros, a cadeira, o chapéu, a mochila. Mais logo também vou sentir o seu peso, mas sem estarem lá, vai parecer que ainda estão.

Sinto a lagoa a passar-me nas pernas, pelo corpo, cabelo, não fecho os olhos, mas abro. Ouço-te, passar-me pelos ouvidos ao emergir de ti, sou tua, sabes disso. Me chamas, não me deixar partir. És mãe, uma mãe que não deixa os filhos ir mais além. Ouço-te chamar, quando vou até ao lado do mar. Sei que me queres abraçar, levar…

Quem me chama então? O marinheiro? O pescador? O carneiro que vi morto a flutuar? A sétima onda? O mar… minha Mãe a lagoa, meu Pai o mar.

Nunca tiro a areia dos pés. Assim caminho de regresso, com areia nos dedos, nas pernas, em mim. Não sacudo, não a tiro com a toalha. Ela simplesmente fica. As sandálias nunca são limpas até à próxima vez. Estou sempre assim, com areia nos pés, com o cheiro da lagoa em mim. Sempre assim, me chamas, chamas por mim. Leva-me, até ti, ó mãe de mim. Queres-nos a todos, ó mãe! Não é assim?

E tu, que aqui a visitas? Quando vais embora, também ela fica em ti. Voltas? Voltas. Porque dela és e, ela te quer. Está em ti.

Hoje vi um lobo, um peixe, um saco verde… pensei em ti, dez vezes. Vi-te nadar, até mim. Mas tu não és daqui, e eu, daí não sou. Acho que nunca fui, porque sempre fui dela. Ela sabe que um dia vou partir, ela sabe que um dia vou, porque vou sempre, porque sou assim. Quando estás quase a chegar, quase tão perto, que quase me consegues tocar, eu vou, já parti. Mas ela, a Mãe, está sempre onde estou, sempre, porque o mar está em mim, tudo é mar, tudo é mar, tudo é mar… é nele que sou, será sempre nele que estou. Mar, estendo-te os braços, colo te peço, mas de nada serve, porque deles são feitos o sal que há em ti. Fecho os olhos, vejo-te chegar, jogo-me forte por entre as ondas, estou em casa, tudo é mar. Aqui sou, aqui estou, enfim. Sou Mar!

Maria Antonieta Campos

Olá! Sou a Maria Antonieta Campos, mãe de três, poetisa, produtora de conteúdos digitais. Em 2019 mudei-me com os meus filhos, para uma casa algures numa aldeia de Portugal. Desde então, passo muito tempo na cozinha, cozinhando e ouvindo música, despertando os meus sentidos para a vida doce e para o bem comer. Pacifista, amante da Natureza e de tudo aquilo que fazemos parte, encontro na vida do campo um modo slow de viver, aprendendo a ser autónoma e a ultrapassar a cada dia, as dificuldades que uma rapariga nascida e criada na cidade, naturalmente encontra ao chegar à aldeia. Livros e pão são a minha paixão, paz é o meu lema. O Contém Livros surgiu aqui, nesta casa em 2020 com uma etiqueta colada na testa, que ao fim e ao cabo, esta etiqueta, diz quase tudo sobre mim…

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